22 de dez. de 2015

Discurso de Clóvis Beviláqua para Pontes de Miranda


   – PEDRO LUSO DE CARVALHO
  Discurso do Sr. Prof. Dr. Clóvis Beviláqua, no banquete oferecido ao Sr. Dr. Pontes de Miranda, a 26 de fevereiro de 1923.
Na sua fala, Clóvis Beviláqua não deixa dúvida de que Pontes de Miranda foi o fundador da ciência brasileira do direito (referência: ROSA, Eliézer. Cadernos de Processo Civil 3. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975, p. 90-95).
Segue, na íntegra, o discurso histórico, na ocasião rara em que esses dois expoentes da cultura jurídica do Brasil estão frente-a-frente; Clóvis Beviláqua para proferir sua fala e, para ouvir a homenagem, que lhe é prestada, Pontes de Miranda, o nosso jurista mais importante, autor de dezenas de livros jurídicos:

Sr. Dr. Pontes de Miranda.
É do meu feitio conservar-me na planície, entre árvores discretas, que benevolentemente dissimulem a minha já de si apagada individualidade, e daí contemplar, como simples espectador interessado, a corrente social, a rolar as águas profundas, ora revoltas, turvas, espumantes, ora na tranquilidade plácida dos espetáculos grandiosos. Mas, uma vez por outra, forças irrecistíveis arrancam-me à sombra apetecida; e, hoje, é com íntima satisfação que cedo ao seu império, e tomo parte neste convívio de intelectuais, para dizer-vos a minha admiração r fr todos nós, pelas radiosas criações de vosso fecundo espírito.
Admiro em vós o esforço continuado, que resiste a todos os embates, e domina todas as dificuldades, expressão da fé científica, em vós tão forte quanto em outros a fé religiosa.
Admiro em vós a inteligência superior, que ilumina e escolhe, que surpreende e produz, que, na embaraçosa complexidade dos fenômenos, descobre a ordem a que estão submetidos.
Admiro em vós a convicção do que sois e do que podeis, sem a qual vos faltaria a coragem de enfrentar a empresa ingente, que tomastes sobre os ombros, com a serenidade de quem cumpre a sua missão.
Sem a vossa excepcional capacidade de trabalho, sem a vossa mentalidade superiormente organizada, e sem a coragem que vos dá a confiança em vós mesmos, não poderíeis escrever o Sistema de Ciência Positiva do Direito, amostra magnífica da altura a que atingiu o pensamento jurídico brasileiro.
Do pensamento jurídico brasileiro, digo, porque, se assimilastes a ciência contemporânea, sobretudo a alemã, sois filho do vosso meio,  e o vosso advento foi preparado pela Escola do Recife, em sua fase jurídica.  Nós ali (desculpem-me os que me ouvem o que haja de pretencioso neste modo de falar), nós ali também sonhamos dar ao direito feição científica, integrando-o na fenomenalidade universal, como expressão do equilíbrio instável das energias sociais, e caso particular da força, que move o universo; fazendo da história e da comparação nosso laboratório, procurávamos ver, através da congérie dos fatos, os elementos constitutivos do direito, em sua universalidade determinada pela estrutura social e pela natureza humana, dados irredutíveis, e nas modificações trazidas pelas condições telúricas, étnicas e históricas; e víamos no direito, segundo as palavras de Tobias Barreto, “um processo de adaptação das ações humanas à ordem pública, ao bem-estar da comunhão política, ao desenvolvimento geral da sociedade”. Assim quando nos dizeis que a função do direito é conciliar os interesses coletivos com os do indivíduo, porque ele é forma de convivência social, e essa forma deve ser, necessariamente, a ordem da organização social, sentimos – que melhor aparelhado – o vosso livro desdobra pensamentos da escola do  Recife, que as sementes, que ela espargia, aproveitada pela ciência nova, se expandem em frondes viçosas. Em flores brilhantes e frutos perfeitos.
Esses pontos de contato, porém, são alicerces de uma concepção geral do direito. Deles parte o espírito, ou para a construção da filosofia de direito, ou para a criação do Sistema de Ciência Positiva do Direito. Seguistes este último caminho, que, sem muito se desviar daquele outro, conduz a resultados mais práticos. É essa a vossa organização mental; amais a realidade interpretada pela ciência, para extrairdes as normas da vida.
E logo se vos apresentou o grave problema: - se a lei não representa, integralmente, o direito, como satisfazer as necessidades de ordem, de conciliação de interesses, de justiça, quando falha a regra legislativa, e não há o costume supletivo? Esta interrogação supõe a lei forma do direito, ao lado de outras; mais radical, apenas a considerais puro símbolo. Não que vos pareça a lei inútil, como a Jean Cruet; mas porque a lei é sempre imperfeita no traduzir relações sociais infinitamente variáveis.
Como quer que seja, há lacuna no direito escrito, e é forçoso preenche-las. Para consegui-lo há somente um meio, que é conhecer as relações sociais em jogo, e delas colher a regra jurídica latente na vida coletiva. Não vos arreceais do arbítrio do juiz, porque ele não decidirá segundo a sua fantasia, mas investigando , objetiva e cientificamente, a regra jurídica existente, que a lei ainda não declarou, nem o costume, espontaneamente, formulou. E a aprovação das consequências retas dirá que a norma foi revelada, como a reprovação mostrará que não há conformidade entre a norma proposta e a necessidade sentida.
Também o nosso Código Civil não se arreceia do arbítrio do juiz, dentro dos estranhos limites, em que o chama a revelar o direito, de acordo com os princípios gerais dominantes. E esses princípios gerais, compreendidos com a necessária latitude, não difere da vossa livre investigação científica, senão porque traçam o círculo dentro do qual tem de se mover a inteligência do julgador.
Mas o campo de aplicação das vossas ideias é muito mais vasto do que o art. 7º da Introdução do Código Civil. Neste, a lei fala ao seu aplicador e diz como há de bater na rocha do deserto, para que jorre a água cristalina, com que se desalterem os sequiosos de justiça. Vós ides muito além, - e mostrais ao legislador que a sua função é semelhante à do juiz. Também lhe cumpre prover às lacunas do direito vigente, investigando as relações sociais, que a vida coletiva desdobra, dilata, entretece e cria, para descobrir a disciplina que as deve reger. Legislador e juiz empregam o mesmo instrumento, que é o método objetivo, com as operações, que lhe são próprias: observação, experiência, comparação, classificação, indução, a que se adita essa forma especial da observação e da experiência, nos fenômenos sociais, que é a história.
Constituindo a ciência do direito, - posto que lhe competia entre a mais complexas e as mais dependentes de todas as que interpretam aspectos do cosmo. Quer isso dizer que à tarefa, já de si pesada, que aos juristas era imposta, no desempenho de sua missão de dizer o direito, interpretando a lei, ou aplicando os princípios gerais, que a completam, exiges do legislador, do juiz e do doutrinário o encargo mais árduo. Se bem que nobilitante, de um preparo enciclopédico, indispensável à revelação do direito. É bela essa perspectiva, mas é difícil galgar o cimo da cordilheira, de onde ela se descortina.
Forçoso será, sem detença, reformar a organização do ensino fundamental e superior, dando-lhe feição mais real, sem desprezar a literária, pois o número dos autodidatas, capazes de aplicar os novos processos, com toda a sua engrenagem científica, é, necessariamente, limitado. Esse preparo, porém, não terá eficiência, sem a correspondente modificação nos costumes políticos e no modo de elaborar as leis.
O impulso, porém, está dado, e essas modificações hão de vir sob a pressão, cada vez mais forte, das ideias vencedoras.
Não é que o direito se vá desprender do povo, e se tornar conhecido, apenas, dos iniciados, ou de uma casta, como outrora. Interessante a todos, a sua tendência é popularizar-se. Mas, para encontrá-lo na nebulosa social, e dar-lhe forma de preceito regulador das relações humanas, exprimindo a harmonia dos interesses colidentes das classes ou dos indivíduos, faz-se necessário conhecer psicologia e a sociedade com a sua organização e a sua história.
Vosso livro, portanto, abre uma era nova na vida  do direito. Para ventura de todos nós ele aparece no momento oportuno. Alguns anos antes seria apenas o grande esforço de um erudito. Hoje, encontra o pensamento humano favorável a essa elaboração científica do direito, e as ideias expostas serão compreendidas, assimiladas e aplicadas.
Apareceu, ainda, no momento oportuno, porque havia mister uma forte reação contra a deliquescência das forças morais, em nossos dias. Há, todos sentimos, penalizados, uma grave perturbação na consciência jurídica. Os espíritos tateiam e se embaraçam na confusão dos princípios abalados em seus fundamentos, e na colisão dos interesses tanto mais prementes quanto mais egoísticos. As leis, as decisões judiciárias, as medidas governamentais, e as relações internacionais refletem esse estado de insegurança, de incerteza, de enfraquecimento do predomínio da razão e dos motivos éticos.
Para dar ordem a essa dolorosa confusão somente uma força existe, que é o conhecimento do direito, a saturação das consciências pelo direito, para que ele se torne impulso e diretriz dos atos humanos, porque o direito é disciplina dos interesses no grêmio social, é organização da vida coletiva, é revestimento brônzeo, de encontro ao qual embotam os golpes das paixões e da injustiça, quando ele, cônscio do seu valor, sabe afirmar-se e resistir.
Mas onde está o direito, revelando-se límpido às consciências, como um sol, que se ergue no horizonte e envolve o mundo no dilúvio luminoso de sua irradiação? O vosso livro oferece instrumentos para descobri-lo nas diferentes situações da vida. É esse o seu elevado intuito, esse seu inestimável valor. Embora escrito em português, há de ter repercussão, que a oportunidade lhe promete, porque os seus ensinamentos não interessam apenas à curiosidade mental, – são reclamados por uma necessidade de situação moral dos homens dos nossos dias.
Desapareceram as possibilidades de erro em matéria de construção legislativa, de decisões judiciárias, de interpretação, de doutrina?
Seria ingenuidade supô-lo Por mais perfeito que seja o instrumento, devemos contar com a inabilidade do operador. Por mais larga que se estenda a estrada, que conduz à verdade, as paixões, os preconceitos, a falibilidade humana, para tudo dizer numa palavra, derramarão sobre ela densos nevoeiros, que desviarão os transeuntes; multiplicam-se, porém, as possibilidades de acertar, e diminuíram-se, proporcionalmente, as causas de erro. É quanto podem desejar os que, dentro das contingências humanas, procuram a verdade e o bem-estar dos indivíduos e das agremiações.
É, portanto, da mais alta significação o vosso livro, para o avanço das ideias jurídicas no mundo, o que importa dizer, para o melhoramento da organização social. Isso explica todo o nosso júbilo de juristas e de brasileiros, e esta efusão sincera, em que ela se traduz.
Disse, há pouco, de passagem, que constituístes a ciência do direito. Devo insistir nesta afirmação, porque, se tivestes precursores, não tivestes modelos; apoiando-vos em trabalhos aparecidos antes do vosso, seguindo uma orientação, que se acentuava, destes formas novas ao pensamento humano, criastes a ciência, que outros apenas entreviram. E, daqui por diante, falarão na ciência brasileira do direito, por que vós a fundastes, sólida e brilhante.
Fortes motivos são estes para que nos ufanemos com o fruto das vossas meditações. Juristas, admiramos e estimamos o que fizestes: como brasileiros, temos orgulho do que produzistes!
  
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