– PEDRO
LUSO DE CARVALHO
Discurso do Sr. Prof. Dr.
Clóvis Beviláqua, no banquete oferecido ao Sr. Dr. Pontes de Miranda, a 26 de
fevereiro de 1923.
Na sua fala, Clóvis Beviláqua não deixa
dúvida de que Pontes de Miranda foi o fundador da ciência brasileira do direito
(referência: ROSA, Eliézer. Cadernos de
Processo Civil 3. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975, p. 90-95).
Segue, na íntegra, o discurso histórico, na
ocasião rara em que esses dois expoentes da cultura jurídica do Brasil estão
frente-a-frente; Clóvis Beviláqua para proferir sua fala e, para ouvir a homenagem,
que lhe é prestada, Pontes de Miranda, o nosso jurista mais importante, autor
de dezenas de livros jurídicos:
Sr. Dr. Pontes de Miranda.
É do meu feitio conservar-me na planície,
entre árvores discretas, que benevolentemente dissimulem a minha já de si
apagada individualidade, e daí contemplar, como simples espectador interessado,
a corrente social, a rolar as águas profundas, ora revoltas, turvas,
espumantes, ora na tranquilidade plácida dos espetáculos grandiosos. Mas, uma
vez por outra, forças irrecistíveis arrancam-me à sombra apetecida; e, hoje, é
com íntima satisfação que cedo ao seu império, e tomo parte neste convívio de
intelectuais, para dizer-vos a minha admiração r fr todos nós, pelas radiosas
criações de vosso fecundo espírito.
Admiro em vós o esforço continuado, que
resiste a todos os embates, e domina todas as dificuldades, expressão da fé
científica, em vós tão forte quanto em outros a fé religiosa.
Admiro em vós a inteligência superior, que
ilumina e escolhe, que surpreende e produz, que, na embaraçosa complexidade dos
fenômenos, descobre a ordem a que estão submetidos.
Admiro em vós a convicção do que sois e do
que podeis, sem a qual vos faltaria a coragem de enfrentar a empresa ingente,
que tomastes sobre os ombros, com a serenidade de quem cumpre a sua missão.
Sem a vossa excepcional capacidade de
trabalho, sem a vossa mentalidade superiormente organizada, e sem a coragem que
vos dá a confiança em vós mesmos, não poderíeis escrever o Sistema de Ciência Positiva do Direito, amostra magnífica da altura
a que atingiu o pensamento jurídico brasileiro.
Do pensamento jurídico brasileiro, digo,
porque, se assimilastes a ciência contemporânea, sobretudo a alemã, sois filho
do vosso meio, e o vosso advento foi
preparado pela Escola do Recife, em sua fase jurídica. Nós ali (desculpem-me os que me ouvem o que
haja de pretencioso neste modo de falar), nós ali também sonhamos dar ao
direito feição científica, integrando-o na fenomenalidade universal, como
expressão do equilíbrio instável das energias sociais, e caso particular da
força, que move o universo; fazendo da história e da comparação nosso
laboratório, procurávamos ver, através da congérie dos fatos, os elementos
constitutivos do direito, em sua universalidade determinada pela estrutura
social e pela natureza humana, dados irredutíveis, e nas modificações trazidas
pelas condições telúricas, étnicas e históricas; e víamos no direito, segundo
as palavras de Tobias Barreto, “um processo de adaptação das ações humanas à
ordem pública, ao bem-estar da comunhão política, ao desenvolvimento geral da
sociedade”. Assim quando nos dizeis que a função do direito é conciliar os
interesses coletivos com os do indivíduo, porque ele é forma de convivência
social, e essa forma deve ser, necessariamente, a ordem da organização social,
sentimos – que melhor aparelhado – o vosso livro desdobra pensamentos da escola
do Recife, que as sementes, que ela
espargia, aproveitada pela ciência nova, se expandem em frondes viçosas. Em
flores brilhantes e frutos perfeitos.
Esses pontos de contato, porém, são
alicerces de uma concepção geral do direito. Deles parte o espírito, ou para a
construção da filosofia de direito, ou para a criação do Sistema de Ciência Positiva
do Direito. Seguistes este último caminho, que, sem muito se desviar
daquele outro, conduz a resultados mais práticos. É essa a vossa organização
mental; amais a realidade interpretada pela ciência, para extrairdes as normas
da vida.
E logo se vos apresentou o grave problema:
- se a lei não representa, integralmente, o direito, como satisfazer as
necessidades de ordem, de conciliação de interesses, de justiça, quando falha a
regra legislativa, e não há o costume supletivo? Esta interrogação supõe a lei
forma do direito, ao lado de outras; mais radical, apenas a considerais puro
símbolo. Não que vos pareça a lei inútil, como a Jean Cruet; mas porque a lei é
sempre imperfeita no traduzir relações sociais infinitamente variáveis.
Como quer que seja, há lacuna no direito
escrito, e é forçoso preenche-las. Para consegui-lo há somente um meio, que é
conhecer as relações sociais em jogo, e delas colher a regra jurídica latente
na vida coletiva. Não vos arreceais do arbítrio do juiz, porque ele não
decidirá segundo a sua fantasia, mas investigando , objetiva e cientificamente,
a regra jurídica existente, que a lei ainda não declarou, nem o costume,
espontaneamente, formulou. E a aprovação das consequências retas dirá que a
norma foi revelada, como a reprovação mostrará que não há conformidade entre a
norma proposta e a necessidade sentida.
Também o nosso Código Civil não se arreceia
do arbítrio do juiz, dentro dos estranhos limites, em que o chama a revelar o
direito, de acordo com os princípios gerais dominantes. E esses princípios
gerais, compreendidos com a necessária latitude, não difere da vossa livre
investigação científica, senão porque traçam o círculo dentro do qual tem de se
mover a inteligência do julgador.
Mas o campo de aplicação das vossas ideias
é muito mais vasto do que o art. 7º da Introdução do Código Civil. Neste, a lei
fala ao seu aplicador e diz como há de bater na rocha do deserto, para que
jorre a água cristalina, com que se desalterem os sequiosos de justiça. Vós
ides muito além, - e mostrais ao legislador que a sua função é semelhante à do
juiz. Também lhe cumpre prover às lacunas do direito vigente, investigando as
relações sociais, que a vida coletiva desdobra, dilata, entretece e cria, para
descobrir a disciplina que as deve reger. Legislador e juiz empregam o mesmo
instrumento, que é o método objetivo, com as operações, que lhe são próprias:
observação, experiência, comparação, classificação, indução, a que se adita
essa forma especial da observação e da experiência, nos fenômenos sociais, que
é a história.
Constituindo a ciência do direito, - posto
que lhe competia entre a mais complexas e as mais dependentes de todas as que
interpretam aspectos do cosmo. Quer isso dizer que à tarefa, já de si pesada,
que aos juristas era imposta, no desempenho de sua missão de dizer o direito,
interpretando a lei, ou aplicando os princípios gerais, que a completam, exiges
do legislador, do juiz e do doutrinário o encargo mais árduo. Se bem que
nobilitante, de um preparo enciclopédico, indispensável à revelação do direito.
É bela essa perspectiva, mas é difícil galgar o cimo da cordilheira, de onde
ela se descortina.
Forçoso será, sem detença, reformar a
organização do ensino fundamental e superior, dando-lhe feição mais real, sem
desprezar a literária, pois o número dos autodidatas, capazes de aplicar os
novos processos, com toda a sua engrenagem científica, é, necessariamente,
limitado. Esse preparo, porém, não terá eficiência, sem a correspondente
modificação nos costumes políticos e no modo de elaborar as leis.
O impulso, porém, está dado, e essas
modificações hão de vir sob a pressão, cada vez mais forte, das ideias
vencedoras.
Não é que o direito se vá desprender do
povo, e se tornar conhecido, apenas, dos iniciados, ou de uma casta, como
outrora. Interessante a todos, a sua tendência é popularizar-se. Mas, para
encontrá-lo na nebulosa social, e dar-lhe forma de preceito regulador das
relações humanas, exprimindo a harmonia dos interesses colidentes das classes
ou dos indivíduos, faz-se necessário conhecer psicologia e a sociedade com a
sua organização e a sua história.
Vosso livro, portanto, abre uma era nova na
vida do direito. Para ventura de todos
nós ele aparece no momento oportuno. Alguns anos antes seria apenas o grande
esforço de um erudito. Hoje, encontra o pensamento humano favorável a essa
elaboração científica do direito, e as ideias expostas serão compreendidas,
assimiladas e aplicadas.
Apareceu, ainda, no momento oportuno,
porque havia mister uma forte reação contra a deliquescência das forças morais,
em nossos dias. Há, todos sentimos, penalizados, uma grave perturbação na
consciência jurídica. Os espíritos tateiam e se embaraçam na confusão dos
princípios abalados em seus fundamentos, e na colisão dos interesses tanto mais
prementes quanto mais egoísticos. As leis, as decisões judiciárias, as medidas
governamentais, e as relações internacionais refletem esse estado de
insegurança, de incerteza, de enfraquecimento do predomínio da razão e dos
motivos éticos.
Para dar ordem a essa dolorosa confusão
somente uma força existe, que é o conhecimento do direito, a saturação das
consciências pelo direito, para que ele se torne impulso e diretriz dos atos
humanos, porque o direito é disciplina dos interesses no grêmio social, é
organização da vida coletiva, é revestimento brônzeo, de encontro ao qual
embotam os golpes das paixões e da injustiça, quando ele, cônscio do seu valor,
sabe afirmar-se e resistir.
Mas onde está o direito, revelando-se
límpido às consciências, como um sol, que se ergue no horizonte e envolve o
mundo no dilúvio luminoso de sua irradiação? O vosso livro oferece instrumentos
para descobri-lo nas diferentes situações da vida. É esse o seu elevado
intuito, esse seu inestimável valor. Embora escrito em português, há de ter
repercussão, que a oportunidade lhe promete, porque os seus ensinamentos não
interessam apenas à curiosidade mental, – são reclamados por uma necessidade de
situação moral dos homens dos nossos dias.
Desapareceram as possibilidades de erro em
matéria de construção legislativa, de decisões judiciárias, de interpretação,
de doutrina?
Seria ingenuidade supô-lo Por mais perfeito
que seja o instrumento, devemos contar com a inabilidade do operador. Por mais
larga que se estenda a estrada, que conduz à verdade, as paixões, os
preconceitos, a falibilidade humana, para tudo dizer numa palavra, derramarão
sobre ela densos nevoeiros, que desviarão os transeuntes; multiplicam-se,
porém, as possibilidades de acertar, e diminuíram-se, proporcionalmente, as
causas de erro. É quanto podem desejar os que, dentro das contingências
humanas, procuram a verdade e o bem-estar dos indivíduos e das agremiações.
É, portanto, da mais alta significação o
vosso livro, para o avanço das ideias jurídicas no mundo, o que importa dizer,
para o melhoramento da organização social. Isso explica todo o nosso júbilo de
juristas e de brasileiros, e esta efusão sincera, em que ela se traduz.
Disse, há pouco, de passagem, que constituístes
a ciência do direito. Devo insistir nesta afirmação, porque, se tivestes
precursores, não tivestes modelos; apoiando-vos em trabalhos aparecidos antes
do vosso, seguindo uma orientação, que se acentuava, destes formas novas ao
pensamento humano, criastes a ciência, que outros apenas entreviram. E, daqui
por diante, falarão na ciência brasileira do direito, por que vós a fundastes,
sólida e brilhante.
Fortes motivos são estes para que nos
ufanemos com o fruto das vossas meditações. Juristas, admiramos e estimamos o
que fizestes: como brasileiros, temos orgulho do que produzistes!
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